Paira o silêncio, a mão toca o rosto, as bocas se aproximam e estala o beijo que já se tornara inevitável. A voz sussurra: “Vem comigo”. Ela segue, os pulmões ofegantes, se atira na cama e a mola do colchão pede certo cuidado. O salto do sapato jogado ressoa no carpete de madeira, o cinto tintila… A respiração ganha ritmo, o lençol escorre devagar e se cala quando alcança o chão, o plástico da camisinha grita. Soa um gemido, dois gemidos, a cama range, as respirações e as exclamações anasaladas se juntam e cantam a duas vozes, a sinfonia do sexo perfeito e espontâneo que acelera e morre, finalmente, em um ou dois suspiros.
A imagem do sexo mágico, puro e de química verdadeira se concretiza sob o mito do silêncio verbal. Acredita-se que o cenário ideal é aquele em que não é necessário pedir nada.
Existe o medo de quebrar sensualidade do momento ao pedir “mais pra esquerda”. É o receio de acusar a pessoa que te acompanha na cama de “não saber fazer direito”. É a insegurança de receber um “não” como resposta a um pedido safado de “me chupa”.
O ideal de silêncio também contribui para a insatisfação cotidiana das mulheres diante da falta de ajuda na casa, insatisfação essa que fica aprisionada dentro da moça, e ela assume a tarefa como uma função que o outro não sabe ou não ficaria contente em desempenhar. É a frustração de esperar que o parceiro repare na mudança da aparência, mas acreditando que o elogio só é válido se vier antes de qualquer menção.
O silêncio soma os pequenos desgostos diários, multiplica a tristeza e potencializa a expectativas não correspondidas. Não houve uma conversa, mas não seria preciso se o amor fosse verdadeiro: afinal, segundo o mito, o amor estabeleceria uma conexão forte ao ponto de comunicar todo o necessário sem palavras.
Mas por que é considerado sinônimo de problema o “ter que falar” para se conseguir o que se quer? Por que o silêncio é considerado o reflexo da química perfeita?
De onde vem o mito do silêncio?
Muito do que as pessoas aprendem sobre relacionamentos bonitos vem dos filmes, novelas, grandes livros. Ali, o melhor casal de amantes não fala durante as preliminares. Eles não precisam de diretrizes. O destino os uniu. Eles não brigam, um sabe do que o outro precisa porque eles se completam naturalmente. Sexualmente, ainda que o casal em cena seja um par de virgens, eles nasceram um para o outro e já sabem exatamente como dar a melhor noite de amor bem na primeira tentativa. Depois, é claro, a conversa deve se limitar a mais declarações de amor sublimes e não a assuntos tão banais como o corpo humano e sua funcionalidade.
A idealização romântica, sem dizer nada, já ensina a toda uma parcela da população que construir um relacionamento onde se comunica cada gosto e desgosto, é forçar um amor que não existe. Afinal, o amor “verdadeiro” é aquele em que já se sabe tudo com o primeiro cruzar de olhos e toque de mãos.
Por outro lado, o mito do silêncio está diretamente ligado com a noção de passividade feminina, característica muito presente no imaginário criado sobre o que seria a “mulher ideal”. Pedir favores sexuais e exigir proteção representa a postura ativa da mulher na cama, transmite a imagem de “mulher experiente”. Imagem esta incoerente com o tal do ideal de mulher, já que a experiência seria motivo para levantar dúvidas sobre a moralidade da moça.
O mito do silencio não é exclusividade hétero: todas nascemos e fomos criadas influenciada pelo velho modelo Mulher-Sentimental x Homem-Sexual, e o ideal de passividade provavelmente influenciou a todas na fase de descobrimento da sexualidade. No entanto. a passividade da mulher é muito mais imposta em relações heteronormativas, nas quais pedidos e diretrizes podem ser questionados e interpretados como ofensas por homens que creem que sabem o que estão fazendo – e que qualquer expressão feminina significaria “insatisfação com o trabalho deles” ou uma “interferência inapropriada” e, claro, inadmissível na performance que não as pertence.
Diante da perpetuação de uma educação que transmite uma postura passiva feminina, muitas meninas – por vergonha, pudor, ou falta de informação – não se masturbam, Conhecendo pouco sobre o próprio corpo, fetiches e vontades, ainda que tenham um parceiro(a) aberto a pedidos, não se conhecem o suficiente para arriscar e demandar
Por que é preciso pedir?
Quando o silêncio serve a um romantismo idealizado, ele arruína relacionamento. Talvez seu par esqueça datas se você não avisar alguns dias antes, talvez não repare que seu sutiã é novo… Mas a definição de que essas burocracias são provas de amor vem da mesma mentalidade que definiu “o papel de mulher servidora” e o “ideal de macho provedor”. Ao invés do silêncio, o diálogo tem de ser considerado o reflexo e o caminho para a perfeita sintonia.
É preciso romper o silêncio porque ainda que muitos homens não queiram perpetuar a cultura machista, eles vivem em uma zona de conforto proporcionada pelo mundo onde foram criados. Sem estabelecer rivalidades, é preciso lembrá-los e conduzi-los pela mão para o caminho da igualdade. É o “Por favor, me ajuda aqui” ou “Faz isso pra mim” que lembra os moços de que nós, mulheres, fomos encarregadas de certas coisas, e que chegou a hora de dividir, sejam essas funções cotidianas ou sexuais. Os homens de boa vontade não terão problemas em dizer “claro”, “partiu”, “faço”, mas talvez eles não enxergarão sua necessidade, sua sobrecarga, sua insatisfação, enquanto os silêncios reinarem.
2 Comentários
Muito bom o texto, li verdades que ficam camufladas em meio a julgamentos.. Parabéns.!
Muito bom texto. Sem falar achismos grotescos e sem pesar culpa para nenhum lado. Ganhou fã.
Com certeza. As mulheres sempre medo. Aos homens sempre incentivo. Se você não é uma pessoa rebelde só se liberta lá na frente…e descobrir isso é mt ruim, pq às vezes vc está em um relacionamento bacana mas quer se libertar. Difícil essa escolha. Se eu tiver uma filha já sei bem os conselhos que vou dar. A questão é a mulher fazer o que ela quiser sem esperar nada do outro…isso que temos que aprender.