Enquanto coordenadora de Redação do Ensino Médio e de cursinhos pré-vestibulares, uma das minhas funções é montar temas de simulados para os alunos praticarem a escrita e o senso crítico sobre determinados temas atuais. Em uma das minhas pesquisas, me deparei com as seguintes manchetes: “BRASIL É O 4º PAÍS EM CASAMENTO INFANTIL” e “BRASIL É PIOR PAÍS DA AMÉRICA DO SUL PARA SER MENINA”
Minha primeira reação foi de choque. O tema não era estranho pra mim: o casamento infantil é uma realidade, mas achava que fazia parte de um costume muito longe daqui. Entretanto, ao ver as pesquisas, percebi que o machismo brasileiro ainda é muito nocivo e está mais forte do que nunca.
Duas coisas me chamaram atenção: primeiro, o fato de existir, em pleno século 21, a prática de meninas – crianças – se casarem, visto que nos remete a uma época em que a menstruação definia quando a menina estava pronta para ser mulher; segundo, o Brasil, um país que cresceu muito em desenvolvimento humano nos últimos anos, estar em uma posição tão elevada no ranking deste problema tão tenebroso.
Quando pensamos em casamento infantil, já fica evidente que é um caso de machismo, daqueles em que intervenção estatal alguma quer discutir. A partir do momento em que o casamento ocorre por uma emancipação da família em relação à menina, a justiça fecha os olhos e garante os direitos que o matrimônio pode oferecer. A grande questão é: meninas tão novas têm plena consciência do papel que estão dispostas a exercer, ou o casamento é uma fuga para a sobrevivência?
Vamos analisar os dados estatísticos para concluir o porquê deste assunto não receber a atenção devida, principalmente pelos órgãos governamentais.
Por que ignoram o casamento infantil no Brasil?
Segundo pesquisa do Instituto Promundo, são mais de 1,3 milhão de meninas casadas com até 18 anos. A idade mínima para se casar diante da lei é de 18 anos, mas, com autorização dos pais, com 16 ou 17 anos também podem realizar matrimônio. Já no caso de gravidez e para evitar condenação de “estupro de vulnerável”, é possível casar até antes dos 16.
Só pela análise das leis, fica evidente como o casamento não é uma escolha da criança, mas, sim, uma alternativa para a vida já marginalizada. O consentimento dos pais, dependendo da família, pode virar caso de troca, e o casamento por meio da gravidez condena a menina a uma vida dedicada quase 100% à maternidade e à casa, visto que a educação é deixada em segundo plano. No caso de estupro de vulnerável, o próprio nome já diz, é uma relação em que a criança foi alvo de uma sexualização indevida. Nenhuma lei garante a integridade e a escolha da menina: a lei só dá opções quando, na verdade, já não há mais nenhuma.
O Instituto aprofunda a pesquisa e o que assusta é a motivação destes casamentos: liberdade em relação aos pais ou fuga de abusos e maus tratos de familiares. A diferença média de idade entre maridos e esposas é de 9 anos, mas há casos de homens de mais de 60 anos casados com meninas de 15. Dessa forma, a grande maioria destas crianças não possuem uma família estruturada e o casamento é uma fuga para – acreditam elas – uma vida melhor.
A partir desta informação, voltamos para a problemática do assunto e para o século 18, no qual mulheres possuíam apenas uma função: gerar herdeiros. É inadmissível que um país como o Brasil, cuja democracia foi construída na base da liberdade e dos direitos, viva os dramas de uma “terra de ninguém”, drama este que deixa claro que na verdade este “ninguém” são homens que querem manter uma cultura patriarcal a todo custo.
Casamento infantil não é novidade
Como eu havia dito anteriormente, o Brasil surpreendentemente faz parte da lista, mas outros já vivem esta realidade faz tempo. Os países que lideram o ranking do problema são Índia, Blangadesh e Nigéria, que possuem enraizada a submissão da mulher como algo legítimo. A falta de direitos é comum e aceitável, visto que se baseiam na tradição dos costumes.
No entanto, o Brasil se destaca pela informalidade das relações, o que é preocupante, pois isso demonstra as brechas que as leis brasileiras possuem para casos de machismo acontecerem. Os casamentos são vistos como rota de fuga que resulta em uma “aceitação”, pois, casada, a mulher será cuidada, terá um futuro doméstico. “Podia ser pior, casada ela tem segurança.” Será?
Os estados mais afetados são o Maranhão e o Pará, mas a pesquisa também destacou o problema em regiões metropolitanas. No Nordeste, a causa é a violência doméstica e com homens mais velhos. Já no centro do Brasil, os casamentos são mais consensuais, visto que é a saída para a gravidez precoce e para “salvar” a reputação da família. Em terras onde as leis são controladas por coronéis que buscam meninas mais novas para lhes fornecerem herdeiros, é quase uma “benção” para a família a menina ser escolhida como esposa. Assim, ela garantirá seu sustento e a família se livrará de um “problema.” Em regiões marginalizadas, implicadas na ausência de lei, o casamento vira uma alternativa à sobrevivência da menina e da criança ao julgamento da sociedade que sempre é muito agressiva em relação às meninas que são mães solteiras.
No entanto, o que faz as meninas enxergarem o casamento como a única saída para seus problemas? A construção social do matrimônio na sociedade brasileira.
A educação para as mulheres é algo recente no Brasil. No passado, somente famílias ricas e não tão conservadoras mandavam suas filhas – geralmente para Portugal – para concluir os estudos, apesar de a atividade ser apenas uma vitrine para conseguir melhores maridos. Para as que não tinham renda, sobrava o matrimônio a qualquer custo. Assim, construiu-se a ideia de que casar fazia parte do curso da vida das mulheres, já que lhes era abdicada a academia.
Sem estudos, as meninas não possuem qualificação para conseguir bons empregos e se veem forçadas a ficarem casadas, sem perspectiva alguma em relação aos seus interesses. Frustradas, muitas vezes abusadas, a gravidez precoce acontece, e, assim, a vida segue com uma única função: cuidar dos filhos.
Além disso, o casamento hoje virou um mercado. Flores, decoração, música, por mais simples que sejam, tornam a prática de casar algo romanceado. O casamento como instituição não remete ao dia a dia, cheio de conflitos e atividades exaustivas para a mulher, mas, sim, ao dia em que ela “realiza seu sonho de menina”. Baseado nesta falácia, o cotidiano do matrimônio com uma criança não é com brincadeiras e descobertas, mas, sim, com obrigações domésticas e sexuais.
É raro escutar se a meninas brasileiras querem de fato fazer isto, e, se elas demonstrarem infelicidade, resta somente uma réplica: “foi você que escolheu”. O que não é verdade: meninas são tratadas como adultas e abusadas sexualmente por homens mais velhos que possuem o consentimento legal para isso.
Segundo matéria da revista “Além-mar”, de julho de 2012, mais de 100 milhões de meninas serão forçadas a se casarem na próxima década – a América Latina não é o foco do problema, somente o Sul da Ásia e a África Subsaariana. O grande equívoco do caso brasileiro é que, enquanto elas são “crianças”, existem muitos programas que asseguram seus direitos, a começar pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, mas, quando se casam, essa infância é perdida e elas são vistas como mulheres, o que as faz perderem diversos privilégios.
Já que as meninas não possuem esse respaldo por parte das instituições públicas, fica evidente que a luta terá que ser no “nós por nós”. O objetivo principal é fazer estas meninas voltarem para as escolas e as instruir a procurar o casamento somente quando isso de fato for a vontade delas, e não consequência de situações drásticas.
Uma líder feminista chamada Tereza Kachindamoto conseguiu anular mais de 850 casamentos infantis em Malawi, na África. Ela instituiu a maioridade dos casamentos para 18 anos e seu objetivo agora é passar para os 21. Apesar de já ter sido ameaçada de morte, ela garante que deixa um legado de contribuição para o desenvolvimento de seu país, mas, acima de tudo, para o poder de escolha destas meninas.
O Brasil, assim como estes países que preenchem estas estatísticas, precisa discutir o machismo em relação aos casamentos infantis. Meninas ensinadas que o casamento é o único caminho para a sobrevivência em situações vulneráveis resultam em mulheres fragilizadas e desiludidas em relação aos seus sonhos e conquistas. O movimento feminista, assim como a força pública, necessita dar mais atenção para o problema a fim de construir um país onde a educação seja a prioridade nas vidas das crianças, e não a relação matrimonial.
Abaixo, um vídeo que a Unicef produziu para o alerta ao casamento infantil no mundo:
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